04 setembro 2010

Asterios Polyp

Asterios Polyp, de David Mazzucchelli
Já muito se falou deste livro por essa internet fora, mas fico com a sensação que ainda não lhe foi dado o devido valor pela qualidade que apresenta. É certo que está aqui uma obra de grande complexidade que pode suscitar as mais variadas interpretações quer a nível do argumento, quer a nível da arte, mas é também quase certo que independentemente da existência dessas variáveis, estamos perante uma das maiores produções da década a nível da 9º Arte. Eu até me arriscaria a afirmar que se houvesse algum livro recente que teria definido uma viragem na abordagem à BD como nós conhecemos, seria este e como tal afirmaria também que esta é a GRANDE obra da década, mas como me é impossível ler tudo o que por aí anda não posso cair nesta tentação. Portanto, é pelo menos a melhor coisa que já li nos últimos tempos. É profundo. É corajoso. É algo que não se vê muito por aí e a proximidade que senti com as personagens foi determinante no sentido desta apreciação. Houve quem tenha detestado o conceito das personagens e consequentemente tenha achado o enredo algo pomposo e audaz demais, o que me levou a concluir que ainda é cedo para que Asterios ganhe o seu lugar no topo da história da banda desenhada. Mas também, apenas 18 mil pessoas ainda o leram...

As variações de estilo de Mazzucchelli, que representam simbolicamente 
algumas situações
Asterios Polyp é narrado de forma não linear, sendo revestido por duas camadas: o passado e o presente. Os dois interligam-se e constituem uma certa relação de simbiose, normalmente sendo um o reflexo do outro. A estória é quase sempre narrada por Ignazio, o irmão gémeo da personagem principal, que nunca chegou a nascer. Isto leva à criação de cenários absurdos, hipotéticos e sobretudo obscuros.  Tudo começa num dia chuvoso, onde Asterios é atingido por um raio que incendeia o prédio onde mora. Pegando em 3 coisas que simbolizam as suas memórias mais ardentes, decide abandonar a sua vida e partir para o desconhecido. É a partir daqui que se dá uma viragem na sua personalidade. Asterios vê o mundo a preto e branco. Para ele tudo na vida se resume ao número 2. Ou é uma coisa ou é outra. Na sua mente não há mais do que duas variáveis, uma abordagem que segundo ele simplifica a vida e a sua visão do mundo. Mas tal noção da existência condenou-o à solidão. Isto deve-se em grande parte ao rumo que a sua profissão tomou. Asterios é um arquitecto, mas nunca construiu um edifício. Para ele, tudo o que não é funcional é meramente decorativo. Os seus alunos não o satisfazem intelectualmente e é a sua mulher Hana que acaba por completá-lo espiritualmente (escondendo a sua faceta mais dilacerante). Apostado em mudar, segue rumo para uma pequena cidade (já trazendo consigo 3 objectos) percorrendo assim um longo caminho para alcançar a sua redenção.

Podemos olhar para a história e analisar algumas das obras norte-americanas que ficaram celebrizadas por representarem pontos de viragem neste meio, sendo o exemplo mais prático Watchmen. Na altura foi quase que uma chapada no mercado, como que a dizer que algo estava mal e que o progresso era urgente e tinha de ser feito. Foi uma obra que com os anos foi ganhando o seu merecido destaque e soube envelhecer bem, sendo ainda uma das colectâneas mais lidas todos os anos, tendo diversas traduções para outras tantas línguas (cá nem isso, teve de ser a senhora Panini a chegar-se à frente com o mal-amado sotaque brasileiro). Nem toda a gente gostou da obra do Mestre Alan Moore nem tão pouco se irá alcançar um consenso total no que toca à sua qualidade. Os puristas ainda aí andam e até houve por aí recentemente um autor, cujo nome me falha, que criticou veemente este clássico afirmando que se tratava de uma amálgama de clichés detestáveis.. Certamente saberá do que fala... Com isto quero eu dizer que os génios raramente são aceites ao primeiro bitaite que atiram, ou à primeira descoberta que fazem. A sociedade não permite isso e a história comprova-o (para muitos, a Terra girava à volta do Sol, até alguém refutar tal ideia e acabar morto no entretanto).
Asterios a revelar a sua verdadeira
personalidade
Com esta analogia concluo que o reconhecimento público unânime ainda está longe para Asterios Polyp. Li alguma discussões na net sobre o dito cujo e percebe-se que houve bastante incomodada com a esperteza das personagens, sua arrogância e costumes algo irritantes, a tal pomposidade que chateia as pessoas. Eu até certo ponto entendo que o personagem principal, Asterios, seja um tipo chato. É bastante realista visto que o mundo está cheio de gente assim, ansiosas por demonstrar conhecimento e achando-se donas da razão e do conhecimento absoluto. Mas as situações que se geram à volta desta premissa e a metamorfose da sua personalidade que encontramos ao longo das páginas deixam-me relutante em aceitar que o descontentamento seja assim tão grande. David Mazzucchelli não expõe aqui apenas um homem cujo destino foi amaldiçoado pelas suas escolhas erradas. Estão aqui espalhadas lições de vida que nos fazem ver quão traiçoeiras podem ser as consequências dos nossos actos, que costumam ferir principalmente aqueles que nos são mais próximos. Ficam também patentes muitos traços da personalidade do autor, tantos que até me arrisco a inserir esta obra na categoria de auto-biografia, mas como não o conheço pessoalmente não posso sustentar esta teoria. Apenas registo que os pensamentos expostos pelas personagens revelam todos um traço em comum e esse traço é o autor. Nota-se que, apesar de serem bastante sólidas, toda revelam um olhar sobre o mundo semelhante, uma cultura filosófica que deixa alguma ambiguidade propositada. Tudo isto através de uma arte esclarecida que dispensa legendas. Asterios Polyp representa o triunfo da imagem em virtude das palavras. Tudo se complementa, mas Mazzucchelli mostra, ensina e define realmente o que a arte pode transmitir através de um olhar, de um cenário, da sua linguagem própria que dispensa palavras.

A beleza simbólica da arte de Mazzucchelli
De certa forma, algumas passagens deste livro fizeram-me lembrar o Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, um livro vincado pelas constantes apreciações das suas personagens em relação ao mundo, o que o tornou muito provavelmente no livro mais citado de sempre. Isto revela alguma coragem de Mazzucchelli, tornando-se ele próprio um protótipo da personagem de Asterios que julga ser um iluminado do conhecimento. Quando vemos Asterios a apreciar a estética de um sapato, a avaliar os projectos dos seus alunos, a relatar os seus conhecimentos sobre a natureza humana, é tudo representado de uma forma apaixonante e ao mesmo tempo intrigante. O autor realmente supera-se e revela aqui uma faceta que eu até agora desconhecia, sendo eu apenas conhecedor da sua obra enquanto desenhador (com destaque para Batman: Year 1, com Frank Miller). Desconhecia ainda mais esta vertente do seu estilo, o cartoon e tiro-lhe o chapéu por, em meras 344 páginas, mostrar muito mais qualidades que certos cartoonistas em toda a sua obra.

A obra explora diversos temas como política, religião, arte, eventos hipotéticos, estética e sobretudo a mitologia grega (não fosse a personagem de origem também ela grega). Alguns acontecimentos ficam ao critério do leitor sendo também evidentes explorações a nível da intervenção divina e destino que nos permitem tirar algumas ilações sobre as consequências dos nossos actos. Terá aquele raio atingido Asterios por mero acaso? Ou terá sido algo mais, algo superior que indicava que uma viragem na sua vida era de extremíssima importância? As referências a Deuses gregos podem ser uma maneira de interpretar esta ocorrência:

"Asterios thought he understood why people believe in a solitary, omniscient God (if the creator of the Universe is spending all his time watching you, it must surely be because he loves you). But my brother always preferred the Gods of our ancestors. By giving them human personalities, the ancient greeks could feel that the world made sense... Because only the whims of a bunch of petty, bickering deities could explain the random events of joy and tragedy that befall human beings (besides, it's always nice to have someone to blame). With such powerful, capricious forces at work, the pressure's off, and everyone can be a supporting character in the larger story - however brief or collateral that role may be." - Ignazio 

2 comentários:

  1. Espectáculo de crítica! Eu iria para a parte técnica mas tu ficaste-te pelo argumento e foi tudo na muche.
    Para mim, o que é mais fascinante no livro é a forma como ele pega em tudo para vincar e mostrar a personalidade dos personagens. Desde o estilo de desenho, o formato das vinhetas, a forma dos balões, o tipo de letra utilizado, tudo é muito característico de cada personagem. Não admira que tenha ganho imensos prémios.

    Onde viste que o livro só foi lido por 18mil pessoas? É que a Diamond UK que distribui para a Europa não conseguia ter o livro em stock durante meses, estava sempre a esgotar.

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  2. DC, essa afirmação que fiz é um pouco relativa claro. Refere-se mais à primeira tiragem de 18 mil exemplares que se esgotou.

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